Queria-o assim, meio mal escrito. Mas, como não consegui,
deixei-o como está, inteiramente. O romance, todo ele, é um borrão.
1
Emília,
cara de ervilha, gritavam os guris enquanto corriam em volta dela no pátio da
Escola de Nível Fundamental Padre João dos Anjos. O que já havia irritado Maria
Emília um bocado de vezes, agora nem mesmo de modo sutil a afetava. Depois de
ter aprendido na catequese que Jesus disse a Deus Pai, pouco antes de ter sido
definitivamente crucificado – Perdoa-os, Pai, eles não sabem o que fazem – ela
passou a ignorar não só o bullying dos coleguinhas, mas também toda provocação,
vinda de quem fosse.
Ela
parou e se virou, olhou para cada um dos três gurizinhos saltitantes que
pareciam querer começar uma ciranda em volta dela. Encarou o Alfredo, o Márcio
e o Alexandre com um semblante sério, de quem não estava disposta a
brincadeiras. Ela sabia que se se mostrasse irritada entraria no jogo deles.
Mas também, por outro lado, se nada fizesse, deixaria espaço para que
insistissem. Os meninos gostam de incomodar, ela pensou... e são tão bobos!
Aqueles
segundos de expectativa sem que ela reagisse parecem ter tido seu efeito. Maria
Emília simplesmente ergueu as sobrancelhas, ficando mais séria do que já
estava, e perguntou, me chamaram? Precisam de alguma coisa? Estou muito ocupada
pra brincar de roda com vocês agora, tá? Márcio, que era o líder e, portanto,
não se achava mais criança, foi o primeiro a desistir. Alexandre se agitou para
tentar dar prosseguimento, mas Alfredo, tendo visto a reação do primeiro e
entendido o recado, puxou o amiguinho pela manga da camisa e disse, vamos,
vamos fazer outra coisa que essa guria aí é muito chata. Nem cara de ervilha,
nem chata, consolou a si mesma. Ela esperava deles um pouco mais do que aquele
tipo de provocação, infantil demais até para eles do quinto ano.
Enquanto as outras crianças voltavam sempre
fervendo do recreio, a pequena Maria Emília caminhava serenamente. Apesar de
ter funcionários vigiando o pátio e contendo sobretudo tentativas de agressões,
os alunos sempre tinham queixas para fazer à professora. Viliam puxou meu
cabelo. O Zezinho jogou meu lanche no chão. A Marieta estragou a nossa
brincadeira de amarelinha. Os guris da outra turma roubaram meu carrinho. A
professora, Dona Zita, suspirava fundo, olhava para cima como a pedir ajuda, e
dizia, acalmem-se todos e vão já pros seus lugares. Depois que conseguia um
pouco mais de silêncio e a atenção dos alunos finalmente estava voltada para
si, acrescentava, por que vocês não fazem como a Maria Emília? Ela não cai na
provocação dos outros e volta do recreio sem reclamar.
A menina que, com isso passava a ser oficialmente o centro das atenções, não sabia se devia gostar ou não gostar de ser posta em evidência daquela maneira pela professora. Era, sem dúvida, um reconhecimento do seu bom comportamento. Mas, por outro lado, tinha o inconveniente de ficar visada pelos colegas. É obvio que a queridinha da profe poderia acabar sendo odiada pela turma inteira, porque era natural que acabaria sendo invejada pois nunca recebia um sermão, somente elogios. Diziam que até nas outras turmas as professoras se referiam a ela na hora de escolher um modelo de aluna exemplar. Isso, no entanto, não chegou a ser problema: ela não tinha culpa daquela admiração e o resto das crianças parecia saber bem disso.
Já em casa, depois do café e dos deveres feitos, organizava suas bonecas na estante que o pai fizera para isso, depois dava um nome para cada uma delas, atribuía uma profissão – professora, doutora, cabelereira, escritora – e inventava uma história individualizada e que, de modo geral, terminava com as suas personagens casando e cuidando dos filhos. Elaborava casamentos, ricos em detalhes, com noiva de vestido, noivo tipo namorado perfeito de boneca perfeita, os bichos de pelúcia como convidados, testemunhas e padre, não podia jamais faltar o padre. Adorava quando vinha uma amiguinha para brincar e complementar os diálogos que ela já tinha criado. Orientava a participante a dizer exatamente o que ela tinha pensado para a ocasião solene, mas nem sempre a coleguinha obedecia. Era um desaforo quando a amiga não seguia o planejado porque, insistia Maria Emília, todo o resto da vida vai dar errado! Entretanto, o casamento das bonecas da infância era a sua brincadeira preferida até a fase em que brincar de bonecas foi deixando de ser tão interessante quanto observar os meninos na vida real. Maria Emília crescia.
Quando se achou um pouco mais madura e quando a história que verdadeiramente interessa começa, Maria Emília não se desfez de algumas das bonecas, que ficaram escondidas, e talvez devessem ficar assim mesmo, mais estimadas no coração do que expostas na estante do quarto. Eram como um troféu dos seus melhores anos da infância, das melhores historinhas, mesmo as inventadas por ela e, em segredo, gostava de se identificar com qualquer uma delas, porque todas eram ela. As bonecas, antes tão em evidência, deram lugar aos pôsteres de atores, atrizes e artistas pop.
Na pacata cidade de colonização alemã de Dois Irmãos, onde nasceu e passou sua primeira década e meia de vida, aprendeu os valores da família tradicional, da verdade, do amor aos pais, bem como todos os importantes princípios católicos que, no doente mundo atual, fariam tão bem a tanta gente que se os seguisse. Era respeitosa e estudiosa, uma filha que só dava orgulho aos pais e professores. Jamais pensava em termos de pecado e culpa: raramente era repreendida por algum mau comportamento e parecia que nada do que ela fazia era errado. Mas ao se descobrir, na adolescência, atraente para e atraída pelos meninos, achou um jeito de experimentar com Marco, um loirinho da outra turma de segundo ano do Ensino Médio, que sempre arrastava uma asa para ela. Também parecia muito legal que ele não dava importância para o fato de ela não ser uma típica alemãzinha de cabelos claros, como a maioria das meninas da turma e da vizinhança.
As colegas já sabiam do interesse, muito mais do dele do que do dela. Talvez tenha sido exatamente isso que chamou a atenção da adolescente; ele era alguém com quem ela poderia experimentar o cobiçado beijo na boca. Ele olhava quando ela passava, assoviava fiu-fiu, dizia coisas sobre ela para os amigos, encolhia a barriga que não tinha e estufava o peito que também não tinha, mas que o fazia ficar com uma postura bem mais altiva e interessante. Pavoneava-se todo ao ver Maria Emília mas não era capaz de tentar dizer para ela uma palavra que fosse. Um dia, depois da aula, ela o encontrou indo sozinho para casa sem a sua famosa bicicleta e se convidou para acompanhá-lo.
Achou muito curioso como os guris de um modo geral pareciam não ter assunto, a não ser que ela provocasse a conversa. Ela contou o que gostava de ver na televisão, as comidas que gostava e como fazia para se divertir. Ele contou que gostava de futebol e que esperava poder entrar para um time profissional quando tivesse idade. Como o caminho da escola até suas casas não era muito longo, e a dela era ainda mais perto que da dele, ela o convidou para repetirem a caminhada no dia seguinte para continuar a interessante conversa, caso ele não fosse de bicicleta novamente. Ele aceitou trocar o vício das duas rodas pela companhia dela, e como ela tinha aquela fama de guria mais madura, independente, ele tentava não parecer tão bobo.
Aos poucos ela ia compreendendo que talvez ele se sentisse um pouco intimidado; o guri não era atirado como alguns dos colegas. Então ela resolveu primeiro se certificar de que Marco estava mesmo a fim dela para não correr o risco de receber um constrangedor não que estragaria sua vida. Rejeição assim não é como brincar de bonecas! Mas como fazer para saber que alguém está realmente interessado? Só porque nos acompanha no dia a dia? Porque nos atura? Porque não desvia o olhar quando estamos falando? Porque repara quando usamos um laço novo no cabelo? Achou que sim, que era tudo isso e resolveu partir para o “ataque”. Um dia, então, quando chegavam perto da casa dela na volta da escola, mais ou menos na altura da porta da frente e sentindo o coração acelerar por causa da ousadia do que ia intentar, botou seu plano em ação. Segurou a mão dele na hora de se despedir e tascou-lhe um beijo no rosto, enquanto segurava o outro lado da face para deixar bem marcado – na memória, que batom não usava – o beijo que era um sinal de que queria mais.
Alguns dias mais tarde quando estava convencida de que ele ainda estava hesitante mas tinha vontade, ela segurou a mão dele durante todo o percurso e encarou ele várias vezes como quem diz “vem”. Neste dia, ao pararem na frente da porta da casa dela, o beijo partiu dele, mas como ela percebeu que ele iria de língua e tudo – finalmente – ela pediu para seguirem um pouco mais adiante. Ele deve ter percebido o que ela pretendia e foi com ela até os fundos de sua casa, onde podiam ter um pouco de privacidade. Atrapalhados, sem saber como movimentar a cabeça, nem a boca e muito menos a língua, experimentaram mutuamente um primeiro beijo que, se não era inteiramente satisfatório em si, era porque deixava um gosto de quero mais, uma necessidade de treino disciplinado para o aprimoramento constante.
O então primeiro beijo “completo” em Marco, nos fundos da casa dele encostados na bergamoteira, deixou-a com o coração acelerado. Não que gostasse muito dele, nem poderia saber de fato se não tinha com o que comparar. Mas a situação de fazer algo quase escondidos, e não apenas algo, algo que poderia ser recriminado, mas que, na verdade, todo mundo fazia – era isso o que a deixava acelerada, com frio na barriga e um pouco de suor nas mãos. Maria Emília não era capaz de contar quantas vezes tinha jogado charme para ele, o que nem era necessário pois só faltava ele babar quando ela passava. Mas atitude mesmo, que seria bom que ele tivesse, nada, muito embora a primeira das línguas a se lançar no interior da outra boca e tocar a segunda das línguas tivesse sido a dele. Concluiu Maria Emília que a iniciativa tinha partido dela e o todo do processo decisório fez com que ela se achasse uma pessoa determinada, não, pessoa não; uma mulher, uma mulher determinada e decidida.
Dos beijos de despedida na saída da escola ou já quase na porta de casa passaram para os amassos escondidos. Era muito interessante sentir tudo aquilo e ver que alguém sentia aquilo tudo, só que diferente. Ela se encostava no Marco e sentia que ele estava de pau duro, o que atiçava imensamente a sua curiosidade. Ele se esfregava nela com uma voracidade que fazia com que nela o desejo de penetração fosse se intensificando. E era tão bom quando o esfrega-esfrega era o negócio dele no negócio dela. Ela achava até que tinha gozado uma vez e tinha quase certeza que ele, ele sim, umas quantas vezes. Dos amassos escondidos o namorico se tornou público, por assim dizer, pois já eram vistos juntos em vários lugares, como cinema, praça e festinha, com direito a mãos dadas e beijos.
Parecia que se gostavam e, mais do que isso, parecia que tinham a necessidade de estar juntos. Como era bastante comum os colegas frequentarem uns as casas dos outros, talvez os pais nem desconfiassem. Mas a frequência com que Maria Emília e Marco andavam juntos fez muitas pessoas entenderem que havia algo entre eles ou que mais cedo ou mais tarde aconteceria. Foi assim que a mãe de Maria Emília, dona Maria Cecília, chamou a filha numa conversa olho no olho para se certificar do que parecia que estava acontecendo e preveni-la de qualquer risco relacionado. Filha, inquiriu a mãe, você está namorando o Marco, o filho do seu Walter? Apesar de se sentir invadida porque achava que era muito madura e, portanto, dispensava essa conversa de mãe e filha, foi categórica na resposta. Ah, mãe, estamos ficando sim, mas não precisa te preocupar porque não vai acontecer nada de mais. De qualquer modo, dona Maria Cecília despejou um enorme discurso sobre doenças venéreas, gravidez na adolescência, métodos contraceptivos, necessidade de manter-se virgem até o casamento na igreja se não nem vai poder casar de branco, que vergonha e, por fim, da importância de sempre dizer aos pais onde está.
A guria já sabia tudo o que a mãe tinha dito pois já tinha ouvido aquilo na escola para os alunos, nas palestras da igreja para o grupo de jovens, na televisão para os telespectadores e assim por diante. Mas achou extremamente válida a dica de sempre dizer aos pais aonde estava, o que ela fazia acrescentando informações para dar a entender que Marco e ela não ficariam sozinhos e não tentariam transar. Era, portanto, um namoro permitido e respeitoso. Muito mais do que o desejo incontrolável, foi essa aparência de compromisso inocente que fez com que ela se encorajasse a dar o próximo passo.
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